segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

Para falar da verdade na religião

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Religião é dar às pessoas esperança em um mundo dilacerado pela religião – Jon Stewart.

No âmbito plural das religiões contemporâneas, e suas intermináveis variações, ainda nos deparamos com a remanescente questão da “Verdade”, sempre ela. Dizer que a possuímos como quem possui um bem material é insanidade – embora não das mais improváveis. Se alegarmos que ela é atingível em sua plenitude ou dissermos, em contrapartida, que ela não existe, nos enganamos por não reconhecer o caráter contingente de nossos pressupostos – que em parte tem provocado a insanidade da posição anterior. Se defendo, porém, que há a “minha verdade”, em detrimento, embora não necessariamente em conflito, com a “sua verdade”, posso estar abraçando ou um vale-tudo relativista improdutivo e sem sentido, ou ingressando na armadilha de, no fim, ainda que relutante, ter de entrar na discussão de qual verdade é, de fato, “A Verdade Verdadeira” (pleonasmo desesperado). Dada a limitação do saber e da experiência humana, enquanto a metafísica, o orgulho e a pretensiosidade reinarem em nossa “vontade de verdade”, ela será mais um instrumento de separação, violência e exclusão.

O que parece ser, afinal, no domínio da religião, a verdade? Aquilo que escapa até mesmo ao mais sincero dos olhares seja pela via da experiência, do conhecimento ou da própria fé, e que só se oferece por relance, como percepção de canto de olho. Quando se diz “aqui está ela”, é porque ela já passou por ali, deixando pegadas, talvez, mas não se faz presente. Não se detém em palavras, conceitos ou ideias. Não se confunde com os chamados “fatos” do cotidiano e da história, pois um fato – refiro-me a fenômenos humanos e não aos de ordem física ou matemática – é sempre um fato construído, notado e narrado por alguém. Até por isso, sim, contra fatos há argumentos – sei que isso irá incomodar uma meia dúzia que costuma usar esse ditado no sentido oposto. Para estes, retomo aqui o algo que escrevi em outro lugar:

Uma das idéias das quais nos abastecemos – os historiadores mais ainda – é a de que fatos existem lá fora. Um fato pode ser entendido genericamente como um fenômeno humanamente reconhecível, e ordenado a partir do tempo e do espaço. Para muitos, fatos são “dados”, isto é, informações que emanam naturalmente dos ocorridos e que, por uma pura observação, caem em nossos colos prontos para serem divulgados. Não foram mexidos, como podem ser os ovos, nem modificados pelo olhar humano. Aliás, para que um fato seja reconhecido como tal se teria de ignorar o tal olhar. Ademais, nisso tudo ainda se propaga a teoria da “tabula rasa” de David Hume, que pressupõe a pura recepção da mente humana dos dados da experiência, demarcando uma continuidade entre o dado, a recepção e o conhecimento.

Assim, tal teoria se faz disseminar entre nós por meio do senso comum de que “contra fatos, não há argumentos”, já que o fato “fala por si mesmo”, e nosso papel é apenas o de descrevê-lo tal como ele é, sem tirar, nem pôr. Fatos, segundo essa visão, emergem das coisas. Embora muita gente ainda pense assim, há muito tempo existem argumentos levantados por diferentes vozes contra tal percepção de um fato. Como resultado, uma da ideias é a de que um fato não é um dado proveniente do mundo externo, mas uma criação proveniente do olhar humano. Logo, aquilo que recebemos como “fato”, contra qual não se poderia ter argumento, surge precisamente de outros argumentos, ou informações suscitadas por alguém, que não “caíram no colo”, nem foram “dadas” e sim produzidas pelo olhar ou perspectiva e traduzidas em linguagem.

É óbvio que isso se aplica ao campo do conhecimento, que surge precisamente desse olhar para a realidade. Repito, não se trata de ciência exata aqui, mas humana (melhor deixar claro, antes que alguém venha dizer que acredita ser um fato que 2 + 2 é igual a 4). Fatos, assim, são construções, à medida que passam pelo filtro do olhar, que naturalmente resulta em interpretação e, por fim, em um enunciado. Não se pode, por mais que se tente, eliminar todas as interpretações naturais, como defendeu Paul Feyerabend. E toda tentativa de fazê-lo, ainda segundo ele, seria autodestrutiva, ou, como disse C. S. Lewis, é aceitar a “oferta do Bruxo”.

Voltemos agora ao assunto principal. No âmbito do cristianismo, Verdade também não é conceito, é uma pessoa chamada Jesus de Nazaré, Filho de Deus, que declarou ser “o caminho, a verdade e a vida”, mas deixou a pergunta em questão (quando feita por Pilatos, conforme relato de João), “o que é a verdade?”, sem resposta pelo menos no sentido epistemológico-filosófico do termo. Qualquer “resposta” dessa natureza seria como que decretar a morte da própria verdade, pois reduzi-la com um “assim é”, é o mesmo que assassiná-la. Jesus não responde, eu presumo um tanto exageradamente, por não querer cometer suicídio.

Assim, ainda que a verdade (pessoa de Cristo) seja a força motriz da religião cristã – alguns diriam que é o amor, mas, não nos esqueçamos o que disse João, “Deus é amor” –, não deve ser usada como arma, força de argumento ou meio de imposição. O relacionamento, o caminhar com e a vida são mais importantes que a certeza do saber e da doutrina correta. Esse foi o recado para Pilatos, e continua sendo o recado para qualquer um interessado na questão da verdade. E quem “é” é, mostra a que veio, não joga todo o peso na precisão do discurso quanto no exemplo de vida humana. E se a verdade ali germina, não é a pessoa que determina, mas o Espírito da verdade. O que significa, por conseguinte, que não faz sentido dizer que o cristianismo é a única religião verdadeira – pois todas são “verdadeiras” no sentido de que buscam a verdade; menos ainda, dito de outro modo, que é o único a possuir tal verdade – porque nenhuma religião a “possui”. Estar em posse da verdade significa poder manipulá-la, transformando-a em algo diferente de si mesma. Não. Para que seja verdade, é preciso ser livre de qualquer dominação, inacessível como “coisa em si” à linguagem e ao conhecimento. Por isso é que, no caso de Jesus, ele disse “eu sou”, e isso basta e já esclarece muita coisa, embora muita gente ainda não entenda, especialmente quando continua a confundir verdade com doutrina ou sua experiência (religiosa) de Jesus, de Deus ou de qualquer outra divindade que componha seu panteão pessoal.

Compreender isso, mesmo que em um nível mais basilar possível, é fundamental tanto para o diálogo inter-religioso, como para o testemunho de fé num mundo pluralista. Se ainda quisermos, por compulsão, falar em “verdadeira religião” é preciso recordar, ainda que de passagem, que na Bíblia não se assevera em lugar algum que o cristianismo é essa religião – por isso digo, num certo tom paradoxal, que ser seguidor do Cristo não me leva (não mais) a forçosamente ter que defender o cristianismo, versão histórica, institucionalizada e departamentalizada desse seguimento, como “a religião verdadeira”. Cito apenas dois exemplos das Escrituras Sagradas (na tradução “A Mensagem”, de Eugene Peterson), que tratam da religião num sentido mais amplo, e paro por aqui, por enquanto:

O primeiro vem do profeta Amós, num manifesto de repúdio divino contra a escolha de tantos em fazer do teatro e da hipocrisia sua morada permanente em termos de religião, esquecendo o fundamental, aquilo pelo que o Senhor anela no ser humano:

Não suporto os encontros religiosos de vocês. Estou cheio dos seus congressos e convenções. Não me interessam seus projetos religiosos, seus lemas e alvos presunçosos. Estou enojado das suas estratégias para levantar fundos, das suas táticas de relações públicas e criação da própria imagem. Não suporto mais sua barulhenta música de culto ao ego. Quando foi a última vez que vocês cantaram para mim? Alguém aí sabe o que eu quero? Eu quero justiça – um mar de justiça. Eu quero integridade – rios de integridade. É isso que eu quero. Isso é tudo que eu quero. (Am 5.21-24 – TAM)

O segundo vem do apóstolo Tiago, que trata de algo fundamental em sua carta – e, se lembramos bem do finalzinho do Sermão do Monte, também crucial para Jesus – que é a coerência entre o falar e o viver, mostrando que religião é menos o que se professa e se ritualiza e mais o que e como se faz, com a vida:

Não se enganem, fingindo-se de ouvintes, quando, na verdade, deixam a Palavra entrar por um ouvido e sair pelo outro. Coerência é tudo! Quem apenas ouve e nada faz é como quem se olha no espelho, e, no minuto seguinte, já nem se lembra da própria aparência. Mas quem dá atenção à mensagem de Deus e a vive na pratica – a verdadeira liberdade – e nela se firma, sem ser mero ouvinte – essa pessoa vai longe e será abençoada por Deus. Qualquer um que se considere “religioso” e fala demais está se enganando. Esse tipo de religião é mera conversa fiada. Religião de verdade, que agrada a Deus, o Pai, é esta: cuidem dos necessitados e desamparados que sofrem e não entrem no esquema de corrupção do mundo sem Deus. (Tg 1.22-27 – TAM)

Jonathan